sábado, 19 de dezembro de 2015

A boa morte


E eram seus 83 anos, anos demais em sua cabeça, anos de menos quando pensava em todas as coisas que queria poder ver acontecer. Mas viu tanto e tudo. Viu os filhos crescerem. Viu os netos nascerem. Viu o cabelo da esposa ficar branco e as dobrinhas de sua pele, de todas as expressões da vida, se tornarem permanentes pelo rosto. Viu os piores e mais dolorosos problemas passarem.
E era nisso que ele pensava quando o médico chegou naquela tarde e disse que não poderia fazer mais nada para curá-lo. Ele apenas assentiu com a cabeça, quieto, compreensivo. Estava deitado em uma cama desconfortável de hospital há semanas, com uma parede sem cor em sua frente e um barulho sem vida saindo dos aparelhos que o monitoravam na UTI.
Sua filha mais nova estava segurando sua mão.  Deu para ver sua expressão mudar, seus olhos diminuírem e lágrimas saírem pelo rosto da caçula. Ele continuou quieto, apertou a mão dela querendo dizer que entendia sua dor, mas que tudo ficaria bem.
Foi de concordância de todos que ele iria para a enfermaria e quando pudesse, assim que pudesse, iria para casa, com todos os medicamentos para dor que necessitava. E isso aconteceu em uma sexta-feira que pareceu a mais feliz de sua vida pelo simples fato de sentir um cheiro de café fresco vindo da cozinha amarela.
O difícil dos próximos dias era ver que após cada sorriso dado tinha saudade. Todo olhar dado era permeado de falta, mesmo que ele estivesse ali presente. Respondia esboçando um sorriso de gratidão. 

 E nada para ele mudou nesses dias. Manteve as contas em ordem, manteve seus filhos por perto, manteve-se informado das notícias do mundo e a felicidade do seu time de futebol preferido ganhando um clássico. Manteve as roupas passadas e a calma de saber que não adianta nada se afligir por bobeira. Manteve o cabelo cortado, a barba feita e o carinho de assistir a novela com a esposa.
Ele manteve sua vida da melhor forma possível, sabendo que nada iria terminar mal quando se vive tão bem. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sem horas e sem dores,esse espaço é recomendado para seus escritos, sejam eles sobre o texto ou sobre a resposta fundamental da vida,do universo e tudo mais.


E-mail para tagarelar mais:
anaclaraj@gmail.com

Fica um abraço pra quem sentir vontade de receber um.